
Internet, e-book, projeto Google: Roger Chartier, professor do Collège de France, analisa essas novidades à luz da história. Uma questão inédita se põe hoje: em sua forma eletrônica, o texto deve manter-se fixo, como acontece com os livros de papel, ou ele pode se abrir às potencialidades do anonimato e da multiplicidade sem fim? O que parece irrefutável é que a multiplicação dos suportes editoriais, dos jornais e das telas de leitura vem diversificando práticas numa sociedade que, contrariamente ao que se diz aqui e acolá, lê cada vez mais.
As mutações do objeto livro
La Vie des idées: Eu gostaria de evocar, com o senhor, a maneira como o objeto livro se metamorfoseia hoje sob a influência das tecnologias ligadas à internet (os e-books, o print on demand, etc.). O senhor poderia retomar algumas das mutações por que o livro passou desde a invenção do códex?
Roger Chartier: A primeira questão é: o que é um livro? É uma questão que Kant se punha na segunda parte dos Fundamentos da metafísica dos costumes, e ele definia muito claramente o que é um livro. De um lado, um objeto produzido por um trabalho de manufatura, qualquer que seja – cópia, manuscrito, impressão ou eventualmente produção eletrônica –, e que pertence àquele que o adquire. Ao mesmo tempo, um livro é também uma obra, um discurso. Kant diz que é um discurso voltado ao público, que é sempre propriedade daquele que o compôs e que só pode ser difundido por meio de uma autorização oficial que ele dá a um livreiro ou a um editor, para que o faça circular publicamente.
Todos os problemas dessa reflexão têm a ver com essa relação complexa entre o livro como objeto material e o livro como obra intelectual ou estética, porque até hoje segue estabelecida a relação entre essas duas categorias – de um lado, obras que têm uma lógica, uma coerência, uma completude e, de outro, as formas materiais de sua inscrição – que podia ser, da Antiguidade até o primeiro século de nossa era, o rolo. Neste caso, muito freqüentemente a obra era disseminada em diversos objetos [diversos rolos]. A partir da invenção do códex (isto é, do livro como o conhecemos, com cadernos, folhas e páginas), uma situação inversa surge: um mesmo códex pode, e chega mesmo a ser a regra, conter diferentes livros no sentido de obra.
A novidade atual é que essa relação entre as várias classes de objeto e os tipos de discurso explodiu, uma vez que há uma continuidade textual que se dá a ler na tela, e a inscrição material nessa superfície ilimitada não corresponde mais a esses tipos de objeto (os rolos da Antiguidade, os códex manuscritos ou o livro impresso a partir de Gutenberg).
Isso gera discussões que podem assumir aspectos jurídicos, no plano do direito ou da propriedade. Como se manterão as categorias de propriedade de uma obra no interior de uma técnica que não delimita mais a obra como acontecia com o rolo antigo ou o códex? E isso pode ter conseqüências sobre o reconhecimento do status de autoridade científica. À época do códex, uma hierarquia de objetos podia indicar mais ou menos a hierarquia da validade dos discursos. Havia uma diferença imediatamente perceptível entre a enciclopédia, o livro, o jornal, a revista, a ficha, a carta, etc., que eram materialmente dadas a ler, a ver, a manipular, e que correspondiam a registros de discursos que se inscreviam nessa pluralidade de formas.
Ora, hoje o único objeto – temos um ali, sobre a mesa de trabalho – é o computador, que acolhe todos os tipos de discurso, quaisquer discursos, e que torna absolutamente imediata a continuidade entre as leituras e a escritura.
Podemos, então, passar às reflexões contemporâneas, mas retomando essa dualidade que não raro é esquecida. O problema do livro eletrônico está posto com a rematerialização dentro de uma ordem de objetos, como o e-book ou o computador portátil, que são objetos únicos para todas as classes de textos. A partir daí, a referida relação se põe em termos novos.
Leia essa interessante entrevista em sua integridade em:
http://www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao03/entrevista_chartier.php
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