As travestis no Programa Saúde da Família da Lapa

por Valéria Ferreira Romano (texto resumido)

Na diferenciação entre travestis, transexuais e homossexualidade temos que travestis são pessoas que fazem uso de vestimenta do sexo oposto para satisfazer experiência de pertencer ao sexo oposto; e transexuais são pessoas que não aceitam o sexo que ostentam anatomicamente (Brasil, 2004).

Já a homossexualidade é definida como atração afetiva e sexual por pessoa do mesmo sexo. Depende da orientação sexual que é considerada como atração afetiva e/ou sexual de uma pessoa pela outra (Brasil, 2004).

Ainda em relação à homossexualidade, é importante considerar que esta foi retirada da relação de doenças pelo Conselho Federal de Medicina desde 1985; e o Conselho Federal de Psicologia estabelece, desde 1999, que nenhum profissional pode exercer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas (CFP, 2006).

No entanto, a Classificação Internacional de Doenças (CID-10) considera as travestis e transexuais como possuidoras de um transtorno da identidade sexual, ou seja, são consideradas como pessoas portadoras de uma doença, merecedoras, portanto, de um tratamento que objetive uma cura (Centro Colaborador da OMS para a Classificação de Doenças, 1993).

No convívio com as travestis, percebe-se ser este um grupo social estigmatizado (Goffmann, 1975) e, portanto, pouco compreendido pelas pessoas em geral e pelos profissionais de saúde em particular, gerando distorções na eqüidade, um dos princípios básicos do SUS.

Características das Travestis do PSF-Lapa

Há uma prevalência de cerca de 90% na faixa etária entre 20 e 30 anos, sendo que 80% não é natural do Rio de Janeiro. Possuindo baixa escolaridade (100% possui ensino fundamental incompleto) e sem qualificação profissional, trabalham como profissionais do sexo nas ruas do próprio bairro em que residem.

As principais patologias encontradas são doenças dermatológicas e doenças sexualmente transmissíveis com predominância de: condilomas, sífilis e HIV.

Há uma tendência à depressão e estados de ansiedade com uso abusivo de medicação psicotrópica, álcool e drogas em geral, tanto lícitas quanto ilícitas. O uso abusivo de álcool merece destaque, pois é o mais utilizado pelas travestis. Com bastante freqüência amanhecem o dia embriagadas.

Possuem muitos e sérios problemas de saúde bucal, precisando de tratamento imediato.

Possuem enorme preocupação com a estética, estimuladas a realizar procedimentos a laser para eliminação de pêlos na face, cirurgias para colocação de silicone nos seios, quadris e pernas, além de correções de angulação e espessura de nariz.

Muitas não podem pagar à medicina privada tais cirurgias e procedimentos, utilizando-se assim de silicone líquido industrial injetado por elas mesmas, o que ocasiona infecções e tromboses principalmente em membros inferiores, causa de internação hospitalar.

Na busca de maior feminilização, a exemplo de aumento dos seios, mudanças no timbre da voz, presença de pele mais fina; a ingestão de hormônios femininos é abusiva, tendo como principal conseqüência distúrbios hepáticos.

Um dos maiores problemas a serem enfrentados na atenção médica com as travestis é o da descontinuidade e, principalmente, abandono de tratamentos. Mesmo diante de doenças crônicas ou de doenças graves que requerem cuidados contínuos, como é o caso da Aids, as desistências são muito freqüentes.

A Recepção das Travestis pela Equipe de Saúde

Logo que começaram a comparecer na nossa Unidade de Saúde, algumas esperadas reações dos profissionais da equipe surgiram: expressões de surpresa, algumas vezes de condenação, comentários sobre suas roupas, seus modos de andar, sua atitude na sala de espera, seu jeito de falar, sua aparência, seus trejeitos mais ou menos parecidos com os de uma mulher, seu corpo sempre a mostra.

Ia ouvindo cada um que vinha tecer algum comentário comigo e tentava anular o tom jocoso que traziam, respondendo com firmeza, mas docemente, sobre a importância da presença delas no ambulatório, a partir da reafirmação do direito à saúde de todos, sem exceção.

Durante algum tempo passei a ser foco de citações da equipe que se referia a mim como "a doutora das travestis", "chegaram suas amiguinhas", "ela gosta disso..." No entanto, aos poucos toda a equipe foi entendendo a dimensão do trabalho, passando a respeitá-lo. Hoje as travestis, sempre chamadas pelo nome que desejam e não pelo nome da identidade, têm um lugar estabelecido na Unidade.

Começamos a colocar cartazes de divulgação sobre preconceito e profissionais de saúde na sala de espera, discutir com a comunidade sobre sexualidade, organizar sessões de cinema com filmes que promovessem uma discussão sobre diversidade.

Hoje as travestis do PSF-Lapa se sentam com calma, esperam sua vez para atendimento, interagem com as pessoas a sua volta na sala de espera. Apropriaram-se de seu lugar, de seu espaço, de seu direito de estar ali como qualquer outra pessoa.

O estranhamento da comunidade diminuiu. A equipe humanizou-se, deixando de estigmatizar e nutrir preconceitos. Quando chego, ouço os relatos: "olha ontem atendi ela, dei a injeção, deu tudo certo", "elas estavam lindas, precisava ver..."

Em relação aos estudantes, o grande ganho foi a familiaridade que passaram a ter com a realidade de vida das travestis, resultando em uma postura humanizada a partir de um olhar ampliado sobre o processo saúde-doença-cuidado.

A preocupação em implementar políticas de saúde que contemplem as necessidades específicas das travestis, a exemplo da aplicação de silicone industrial e ingestão excessiva de hormônios femininos, além do uso abusivo de drogas lícitas e ilícitas, é apostar no respeito à diferença e na valorização da dignidade humana.

O direito à saúde deve ser uma prioridade universal, dentro de um SUS que ajudamos a construir, no cotidiano dos serviços que são formados por pessoas, as únicas que podem, de fato, transformar a realidade.

Valéria Ferreira Romano - médica e Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social - Universidade do Estado do Rio de Janeiro. E-mail:
valromano@uol.com.br

Fonte: Saúde e Sociedade, 2009


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1 comentários:

  1. Gostei do artigo e da página como um todo. Porém quero justificar minha decepção pela inexistência de sites, artigos ou qualquer outro tipo de programas que sejam mais claros e objetivos quanto aos tratamentos para feminilizaçao das travestis, como aumento dos seios, formas femininas dos quadris, etc. Gostraria que, se vcs souberem algo mais consistente, me indicassem.
    Grata,
    Edi Cris

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