
SEXO NA LÍNGUA
Já há algum tempo ouço no início da fala pública de algumas pessoas, em forma de cumprimento, o(s) seguinte(s) enunciado(s): bom dia, boa tarde ou boa noite a todos e a todas. Convém dizer que esse uso lingüístico, marcando sexualidade no vocábulo “todos”, se transformou numa verdadeira moda não só em nosso país, mas também na maioria dos países lusófonos.
(.................)
Quando esses falantes enunciam tais cumprimentos, o fazem confundindo sistema abstrato de regularidades (fonológicas, morfológicas, sintáticas), com o funcionamento discursivo desse sistema. Caso não existisse essa diferenciação, poderíamos pensar na seguinte analogia: se a sociedade é constituída por diferentes grupos sociais e a língua é o reflexo desses grupos, teríamos então tantas línguas quanto são os grupos sociais. Ou grosso modo exemplificando, nós trabalhadores teríamos uma língua distinta da dos burgueses. E isso é um óbvio absurdo.
Uma outra confusão que esse tipo de falante faz, embora acredite ser politicamente correto, é confundir gênero gramatical com gênero sexual. (...)
Assim, é equivocada a interpretação que, a partir de uma relação direta entre língua e sociedade ou cultura, vê indícios de discriminação contra a mulher no enunciado bom dia a todos. É como se o sentido do vocábulo “todos” estivesse preso ao único referente: ser humano do sexo masculino. Nesse caso e, ampliando um pouco mais a questão, como ficaria o cumprimento aos homossexuais?
(.................)
Acredito que o enunciado seja relativamente suficiente para nos mostrar que as relações entre língua e sociedade ou cultura se dão no uso efetivo da língua, estes entendidos não como uma mensagem ou informação, mas como a linguagem em processo de discursivização. O que implica dizer que o machismo, ou o preconceito étnico, ou sexual, ou qualquer outro tipo de deformação da realidade se inscreve na ordem do discurso e não na ordem da língua (fonologia, morfologia, sintaxe).
Assevero que esse tipo de cumprimento faça parte de um discurso maior que vem tomando conta da nossa sociedade. Atualmente todos os nossos sentimentos e práticas são calculados, espetacularizados e positivados por uma espécie de humanismo político de "boas intenções". Trata-se de um movimento ocidental que se constitui numa espécie de cruzada iluminista que esclarece sobre o uso não-sexista da língua, pedofilia, machismo, drogas, homossexualismo, violência doméstica, idosos, ecologia, armas, preconceito racial que produz e comercializa um imaginário de cidadania. Nesse momento, nada, nem ninguém escapa desse fundamentalismo mercadológico de ocidentais práticas do politicamente correto.
Pensemos um pouco a respeito, caso contrário, corremos o risco de sair por aí dizendo bobagens tais como a de que a língua portuguesa é machista, pois a maioria dos palavrões pertence ao gênero feminino; que existe um "zoomorfismo" lingüístico no futebol brasileiro, pois temos porco para palmeirense; urubu para flamenguista; gavião para corintiano; peixe para santista; galo para atleticano e assim por diante.
Roberto Leiser Baronas - Doutor em Lingüística e Professor no Departamento de Letras e no Programa de Pós-Graduação em Lingüística da UFSCar.
Publicado em: 22/10/2008 em Click Ciência: http://www.clickciencia.ufscar.br
Massa o texto! Faz sentido são coisas que a gente faz às vezes e não percebe.
ResponderExcluirGostei da parte do artigo onde o autor escreve "cruzada iluminista", parece mesmo que somos obrigados ao politicamente correto em tudo, afinal a política, segundo Maquiavél, é a arte de fazer inimigos. Então, cada um com o seu discurso, com a sua linguagem característica....
ResponderExcluirValeu Atreyu!
Olha, falar direitinho eu tento o máximo que eu posso mas às vezes é difícil.
ResponderExcluirComo você escreve bem!
Sucesso pra ti.